sábado, 30 de abril de 2011

Quem paga a conta?

É comum para o brasileiro esperar que obras públicas não sejam entregues no prazo, e pior, que podem não ser entregues nunca. É comum ainda, esperar que, uma vez concluídas, estejam entre as de pior qualidade que a engenharia mundial consegue produzir e sempre, em todos os casos, acabam custando muito mais caro do que deveriam. Atrasar na entrega, entretanto, é comum e tão esperado que o povo parece fazer questão de esquecer qualquer data marcada. Isso pra não se decepcionar tanto.

A Ferrovia norte-sul, por exemplo, tem avançado num ritmo de Maria-Fumaça. Gastou 17anos para andar apenas 215 quilômetros. As obras que começaram em 1987 só tiveram o primeiro trecho inaugurado uma década depois. Em 2003 o governo retomou o projeto, mas a construção só ganhou velocidade em 2007, graças ao dinheiro da Vale, que arrendou um trecho da estrada de ferro.

Segundo investigações recentes do Ministério Público Federal, a Valec, empresa responsável pela Ferrovia Norte-Sul, contratou, em janeiro de 2006, a empresa Constran para execução de obras de infraestrutura e superestrutura ferroviárias e obras de arte especiais, em trecho de 105 quilômetros, entre o Pátio de Santa Isabel e o Pátio de Uruaçu, com sobrepreço da ordem de 29,45%. José Francisco das Neves, presidente da Valec, é acusado de superfaturar o contrato para a construção da estrada de ferro. O valor do contrato é de R$ 245 milhões, mas, de acordo com perícias criminais, o custo da obra não passaria de R$ 197 milhões.

Quem tomou conhecimento disso? Não prestar atenção às datas, aos valores, nunca cobrar cumprimento de promessas é, sem dúvida, um jeito bem brasileiro de exercer a cidadania. Assim, não há tanta expectativa quando se ouve, em época de campanha política, promessas de grandes construções, do tipo que faz a gente sonhar, como o anúncio feito em 2009, da construção de um grande Hospital de Urgências para atender a região norte, com sede em Uruaçu. Parece até haver uma concordância coletiva de que “se vier é lucro”. Neste caso, um ingrediente a mais, isto é, a possibilidade de outro município conseguir fazer a obra acontecer, “sair do papel”, mexeu com os brios dos políticos uruaçuenses: o prefeito de Alto Horizonte, arrotando poder, propõe ajuda pecuniária ao governo do estado para que o Hospital Regional seja ali construído.

Diante disso, os uruaçuenses ficamos revoltados, afinal, a promessa foi feita para Uruaçu, no palanque. Eu também estava presente no comício (?) de lançamento da “pedra fundamental” do que seria o Hospital Regional. Vi o rosto daquele povo que ouvia os discursos das diversas autoridades, e como eles, acreditei no otimismo, no altruísmo e na lógica política deles. O projeto beneficiaria, principalmente, uma parcela da sociedade que não possui veículo, nem plano de saúde. Aquela que recebe atendimento precário nos postos e no Cais da cidade. Talvez como eles, também sonhei com um bom prédio, bem equipado, com todas as especialidades médicas. Aliás, esta foi a imagem que os discursos queriam formar em nossas mentes.

As opiniões agora se dividem, é claro, e com mais calor entre os interessados em levar vantagens nas urnas em 2012. Entretanto, grande parte do público carente, alvo desse atendimento hospitalar, sequer conhece as causas e consequências das decisões do jogo político que ora se instaura entre os dois municípios. Como o Hospital Regional do Norte ainda não saiu do papel, é provável que muitos acreditem no senso comum de que nunca será construído porque o prefeito, como leram no panfleto recentemente distribuído nas ruas de Uruaçu, seria irresponsável, imoral e incapaz de gerenciar o bem público. Uma manobra política comum por aqui: desmoralizar os oponentes sem comprovação nenhuma.

Por outro lado, o prefeito de Alto Horizonte argumenta que seu município tem uma alta arrecadação de impostos – lá o dinheiro está sobrando – e que, de acordo com a Constituição Federal, precisa investir, obrigatoriamente, 15% dessa arrecadação na Saúde. A construção do hospital resolveria esse problema. Contudo, está claro que cria um problema para os demais municípios que circundam Uruaçu e dependem, quase que exclusivamente, do seu atendimento hospitalar.

Especulações e politicagem à parte, o que tem de real até agora é que o Governo de Goiás, por muito tempo, não tem dinheiro para investir como contrapartida em obras como esta. A fatia maior viria do governo federal, que também já anunciou contenção de gastos para este ano. Portanto, tudo aponta para o adiamento dessa construção, seja em Uruaçu, seja em Alto Horizonte.

Mas, a pergunta que fazemos é: por que as obras não foram iniciadas antes? Para onde foram as verbas destinadas para essa construção? Quem tapa o rombo das campanhas políticas de 2010? A verdade é que é o povo quem vai pagar, e nem saberá que está pagando – ou, se souber, não vai brigar por causa disso. Ninguém quer saber dessas coisas, quando há tanta distração – carnaval, copa do mundo... Afinal, quem se lembra de coisas sérias nestas ocasiões?

quinta-feira, 3 de março de 2011

PRECONCEITO RACIAL

CASO: No Elevador
A estudante Flávia, negra, 19 anos, segurou a porta do elevador social de um edifício luxuoso enquanto se despedia de uma amiga. Em outro andar alguém começou a esmurrar a porta do elevador. Flávia decidiu então soltar a porta e, depois de conversar mais alguns instantes, chamou o outro elevador, o de serviço. Ao entrar nesse elevador, encontrou a empresária Tereza, loira, olhos verdes, 40 anos, acompanhada do filho, Rodrigo, mesmo perfil, 18 anos. Ao ver Flávia entrando, Tereza de imediato perguntou quem estava segurando o elevador. Flávia disse que não estava prendendo o elevador e que ela apenas tinha demorado um pouquinho a entrar. A empresária não gostou da resposta e começou a gritar “Você tem que aprender que quem manda no prédio são os moradores, preto e pobre aqui não tem vez”. Flávia ficou assustada, mas reagiu: “A senhora me respeite”. Mas a Tereza continuava “Cale a boca, você não passa de uma empregadinha”. Ao chegar no saguão, Rodrigo também entrou na briga berrando: “Se você falar mais alguma coisa, meto a mão na sua cara”. Ainda mais assustada, Flávia perguntou se eles a conheciam e exigiu que lhe respeitassem, mas o rapaz avançou na direção dela ameaçador: “Cala a boca! Se você continuar falando meto a mão no meio das suas pernas”. Finalmente, na confusão, quando Flávia tentava fugir da situação, Tereza segurou no seu braço e Rodrigo lhe desferiu um soco no rosto. Flávia saiu do prédio chorando e foi procurar socorro com o seu pai, o governador do estado. Imediatamente o governador deu parte à polícia e Tereza e Rodrigo foram processados por racismo.

(baseado em fatos reais, ocorridos em Vitória/ES, conforme matéria da Veja, 07.07.1993).

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

COMUNIDADE QUILOMBOLA - CAVALCANTE

Crônica

Pirâmide invertida

Quando pequena, provavelmente por causa das histórias que ouvia em casa, percebia os andarilhos como pessoas meio fantásticas, misteriosas, do tipo que não revela sua verdadeira identidade por um motivo grandioso, nobre. Anjos ou demônios disfarçados, rondando a terra para intervir na vida dos homens, talvez. Não tinha certeza.

Recentemente encontrei um deles. Distraída com uma leitura interessante acabei chegando atrasada para a feirinha da quarta-feira na minha cidade. Já restavam poucas bancas e nelas poucas verduras. Mesmo assim, preferi comprar as verduras da semana lá, porque são mais saudáveis, “orgânicas”, como alguns feirantes já aprenderam a classificá-las para atrair os fregueses ou justificar os preços. Comprei pequi, os primeiros deste ano, queijo curado e fui então procurar tomates. Quando estava escolhendo um andarilho aproximou-se da banca. Olhei-o esquecida da desconfiança que tinha deles.

Este era um homem ainda jovem, negro, de cabelos avermelhados talvez queimados de sol. Sorriu com todos os dentes e ficou por ali. Parei de prestar atenção nele e me concentrei no ato de escolher os tomates. Comprei também as últimas mangabas naquela mesma banca e saí.

Já na saída da feira procurei o troco que havia recebido na banca de queijo e não encontrei. Voltei lá, olhei ao redor e nada. Se tem uma coisa que me deixa chateada é perder dinheiro. Acho até que esta foi a primeira vez. Em casa vasculhei os bolsos, a carteira, as sacolas de compra e nada. Sou muito cuidadosa, mas desta vez alguma coisa meio estranha aconteceu.

Mais tarde fiquei pensando no dinheiro. Aquele pesar... Fiz as contas e descobri que não era muito. Puxa vida, perdi mesmo. Então veio a descoberta. O andarilho! Foi ele quem ficou com o dinheiro. Então comecei a repensar aquele momento. Ele não comprou nada, mas se dirigiu para a banca como se esperasse encontrar alguma coisa – o meu dinheiro. Ele já o estava vendo! Pegou e saiu. Foi isso.

Bom, se foi ele, não faz mal, pensei. Até aceito perder o troco. Imagino que tenha sido levado até ali por alguma intuição para encontrar exatamente aquele dinheiro, talvez estivesse com fome ou precisando de qualquer outra coisa.

O que procuram as pessoas quando saem assim caminhando? O que os fizeram desistir da segurança e da estabilidade da família, do trabalho certo, do salário no final do mês? Resolveram não fazer parte das organizações estabelecidas pela sociedade, pelos sistemas que colocam cada um no seu lugar? Por que as pessoas saem caminhando assim, sem rumo, deixando familiares, casas e a própria história para trás? Loucura ou desejo de liberdade, crença em algo extraodinário, sei lá. Fuga, rebeldia, inquietação? Resposta definitiva a uma situação de abandono a que foram colocados por alguém? Alguns vivem, conscientemente, o hoje, como os niilistas, outros, sequer percebem o agora, mas todos rebeldes de alguma forma.

Rebeldes também foram os românticos e os hippies contra uma organização preparada para enquadrá-los e formatá-los para que seguissem um caminho previamente percorrido por outros. Quanto custa dizer não ao modo de vida escolhido e aceito pela maioria? No final, quando tudo se acabar (ou começar) creio que teremos a resposta. Imagino a surpresa quando virmos a pirâmide dos valores invertida e os miseráveis, pobres, esquecidos em situação privilegiada.

Uruaçu, novembro de 2010