quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

COMUNIDADE QUILOMBOLA - CAVALCANTE

Crônica

Pirâmide invertida

Quando pequena, provavelmente por causa das histórias que ouvia em casa, percebia os andarilhos como pessoas meio fantásticas, misteriosas, do tipo que não revela sua verdadeira identidade por um motivo grandioso, nobre. Anjos ou demônios disfarçados, rondando a terra para intervir na vida dos homens, talvez. Não tinha certeza.

Recentemente encontrei um deles. Distraída com uma leitura interessante acabei chegando atrasada para a feirinha da quarta-feira na minha cidade. Já restavam poucas bancas e nelas poucas verduras. Mesmo assim, preferi comprar as verduras da semana lá, porque são mais saudáveis, “orgânicas”, como alguns feirantes já aprenderam a classificá-las para atrair os fregueses ou justificar os preços. Comprei pequi, os primeiros deste ano, queijo curado e fui então procurar tomates. Quando estava escolhendo um andarilho aproximou-se da banca. Olhei-o esquecida da desconfiança que tinha deles.

Este era um homem ainda jovem, negro, de cabelos avermelhados talvez queimados de sol. Sorriu com todos os dentes e ficou por ali. Parei de prestar atenção nele e me concentrei no ato de escolher os tomates. Comprei também as últimas mangabas naquela mesma banca e saí.

Já na saída da feira procurei o troco que havia recebido na banca de queijo e não encontrei. Voltei lá, olhei ao redor e nada. Se tem uma coisa que me deixa chateada é perder dinheiro. Acho até que esta foi a primeira vez. Em casa vasculhei os bolsos, a carteira, as sacolas de compra e nada. Sou muito cuidadosa, mas desta vez alguma coisa meio estranha aconteceu.

Mais tarde fiquei pensando no dinheiro. Aquele pesar... Fiz as contas e descobri que não era muito. Puxa vida, perdi mesmo. Então veio a descoberta. O andarilho! Foi ele quem ficou com o dinheiro. Então comecei a repensar aquele momento. Ele não comprou nada, mas se dirigiu para a banca como se esperasse encontrar alguma coisa – o meu dinheiro. Ele já o estava vendo! Pegou e saiu. Foi isso.

Bom, se foi ele, não faz mal, pensei. Até aceito perder o troco. Imagino que tenha sido levado até ali por alguma intuição para encontrar exatamente aquele dinheiro, talvez estivesse com fome ou precisando de qualquer outra coisa.

O que procuram as pessoas quando saem assim caminhando? O que os fizeram desistir da segurança e da estabilidade da família, do trabalho certo, do salário no final do mês? Resolveram não fazer parte das organizações estabelecidas pela sociedade, pelos sistemas que colocam cada um no seu lugar? Por que as pessoas saem caminhando assim, sem rumo, deixando familiares, casas e a própria história para trás? Loucura ou desejo de liberdade, crença em algo extraodinário, sei lá. Fuga, rebeldia, inquietação? Resposta definitiva a uma situação de abandono a que foram colocados por alguém? Alguns vivem, conscientemente, o hoje, como os niilistas, outros, sequer percebem o agora, mas todos rebeldes de alguma forma.

Rebeldes também foram os românticos e os hippies contra uma organização preparada para enquadrá-los e formatá-los para que seguissem um caminho previamente percorrido por outros. Quanto custa dizer não ao modo de vida escolhido e aceito pela maioria? No final, quando tudo se acabar (ou começar) creio que teremos a resposta. Imagino a surpresa quando virmos a pirâmide dos valores invertida e os miseráveis, pobres, esquecidos em situação privilegiada.

Uruaçu, novembro de 2010

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Crônica Uruaçu

NO MEU TEMPO NÃO ERA ASSIM

No meu tempo Uruaçu era uma cidade pequena. Os poucos moradores que tinha vinham das fazendas próximas em busca de escola para os filhos. Mais tarde é que a população foi aumentando. Muitas famílias e, principalmente homens sozinhos vieram para cá atraídos pelo garimpo de ouro. Nós não, já estávamos aqui e nossa chácara abarcava os dois lados do rio. Talvez por isso eu pensasse que esse rio era nosso. Eu e minha irmã mais velha o vigiávamos dos outros meninos bagunceiros que teimavam em tomar banho no nosso rio. O Rio Machombombo.

Muitas passagens eram usadas pelas mulheres lavadeiras de roupas. Elas também me incomodavam com sua cantoria e destemor. Não faziam conta da minha figura ali plantada e nem se importavam com a minha cara feia quando eu passava perto dos seus batedouros e parava com as mãos na cintura esperando que olhassem pra mim para então desferir-lhes na cara com os lábios semicerrados: este rio é meu! Elas riam e continuavam a bater e a esfregar as roupas retiradas de grandes trouxas que traziam na cabeça, feito formigas cabeçudas. De vez em quando erguiam a cabeça e gritavam com os filhos que brincavam ao longe, qual macacos, subindo nas árvores e pulando na água.

No meu tempo era uma delícia nadar nos pocinhos formados ao longo do Machombombo. Quando estava calmo suas águas eram muito limpas. Podiam-se ver as pedrinhas brancas no fundo e os peixinhos nadando. Quando chovia ele transbordava, ficava feroz, atirava-se com força nos barrancos até derrubá-los. Então se alargava. Pra nós era um tesouro. Ninguém mais tinha um rio como aquele passando no fundo de casa.

O tempo passava devagar e a gente nem se dava conta. Os dias eram grandes. Não me lembro quando, mas um dia percebi que havíamos crescido. Já não vigiávamos o Machombombo. A cidade começou a ficar diferente, o rio também. Ruas eram abertas com rapidez impressionante por tratores barulhentos. Hospitais, restaurantes e hotéis eram construídos a todo vapor. Tudo mudava rapidamente naquela época. As moças também mudaram muito o modo de namorar.

Ah, no meu tempo não era assim. No meu tempo os romances estavam prontos nos sonhos da gente. Era só abrir os olhos e ficar sentada ouvindo o barulhinho das águas descendo e pulando sobre as pedras e tudo acontecia de novo. As paisagens mudavam, mas o príncipe não. Era sempre o mesmo. Decorei-lhe a face bela, o sorriso, a roupa, porque o sonho se repetia sempre.

O rio perdeu o encanto. Eu perdi o encanto também. Não sonho mais às suas margens com o príncipe encantado que viria em um enorme barco vestido de marinheiro e quando me visse assim, vestida de princesa, se apaixonaria, me pediria em casamento e nos casaríamos ali no barco mesmo. O Padre não ia se negar diante de um amor tão lindo! Todos assistiriam admirados e invejosos da sorte da mocinha custosa que achava que era a dona do rio.

O tempo passou, o príncipe não veio e eu me tornei adulta. Talvez por fidelidade o rio também se entristecesse, tornando-se escuro, taciturno depois raquítico. Não era assim sombrio o rio Machombombo. Franzino e hostil não encanta mais ninguém. Talvez pela chegada de tantos novos moradores, cada qual querendo ganhar mais, numa competição assustadora. Brigavam por espaço. Naquela época compravam tudo que quisessem vender. Os moradores antigos ficavam admirados com a facilidade com que adquiriam os lotes, as casas, as chácaras e construíam casas diferentes das nossas. Meu pai resistiu o quanto pode. Acabou vendendo meu rio.

Suas águas acabaram ficando sujas e mal-cheirosas, não convidam mais aos sonhos. Fizeram praça de lazer às suas margens pra ver se atraía o povo. Nunca vi ninguém sentado naqueles bancos pra namorar ou conversar. No meu tempo os galhos das árvores é que serviam de banco onde a gente se sentava e brincava de ser macacos.


Texto produzido pela Professora Maria Aparecida de Oliveira Borges– Instituto Federal de Educação de Goiás – Campus Uruaçu, baseado na história da infância da amiga Hilda.

sábado, 18 de dezembro de 2010

CACHOEIRAS INDOMÁVEIS

Quando li pela primeira vez Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas dizendo que “Viver é muito perigoso... [...] Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o consertar consertado” achei difícil de entender, exagerado até. Onde estava o perigo? Viver era tão simples. Não havia nada pra ser consertado no mundo. Eu estava errada.

Acabei descobrindo que o perigo é real, existe mesmo e com várias faces. Que a raiz do mal está dentro da gente, e fora também. Que não conseguimos consertar o mundo. Descobri, por outro lado, que há aqueles que estão no lugar de corrigir e não o fazem. Percebi pais despreparados para educar, autoridades corrompidas pelo poder e vítimas amedrontadas. Elementos perfeitos pra formar o círculo vicioso que perpetua a ferocidade dos arrogantes e prepotentes que agridem, batem e até matam porque se julgam intocáveis, acobertados, protegidos, acima do alcance da justiça humana.

Violência não sentida, vista de longe parece ficção. Real mesmo é quando acontece em casa, com o filho da amiga, seu ex-aluno, aquele que você conheceu adolescente, engraçado, descobrindo o mundo. Aí sim, a gente sente uma espécie de revolta, nojo, medo de viver, vontade de vingar ao saber que ele foi espancado, chutado, com toda crueldade que se pode imaginar.

Esta madrugada três jovens da cidade de Uruaçu atacaram outro covardemente. Nem pergunto o motivo porque não vejo nenhum que justifique a violência do espancamento. Tal como aqueles de São Paulo que depois de serem vistos na filmagem foram desbancados do papel de filhos da mamãe que cometeram apenas um deslize no agito da turma espero que esses também sejam desmascarados.

São muito conhecidos e tal como os outros tem a certeza da impunidade. São importantes, tem dinheiro e por isso gozam de certas regalias na comunidade. Às vezes nem são denunciados. Não é a primeira vez que espancam seus desafetos. A estratégia é sempre a mesma. Agem em grupo. Um provoca, dando o primeiro murro e os outros chegam junto. Os "outros", fiquei sabendo, nem são parentes. São aqueles que, no resquício do coronelismo, se juntam a eles na defesa, talvez esperando algum benefício. Em outras palavras os "bate-paus".

Esse tipo de comportamento desqualifica o que há de mais notável no homem, a capacidade de se comunicar, raciocinar e resolver questões com diplomacia. Um paradoxo do nosso tempo. Na era da comunicação os jovens resolvem seus “conflitos”na porrada.

Amedrontam porque são perigosos, indomáveis e imprevisíveis. Guimarães Rosa dando voz ao matuto de muitos anos atrás, cujo medo principal estava atrelado ao misticismo, à crença de que viver é negócio muito perigoso em face dos desassossegos causados pelo demônio, conclui afinal, que muitos dos medos existem só dentro da gente. A cachoeira não passa de um morro com água caindo em cima dele. Desmancha-se o morro e acaba-se a cachoeira. O medo de hoje, entretanto, é mesmo de pessoas - cachoeiras bravias, morros de concreto. Quando serão derrubados?



Maria Aparecida de Oliveira Borges
Professora L. Portuguesa
Instituto Federal de Goiás – Uruaçu