terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Crônica

Pirâmide invertida

Quando pequena, provavelmente por causa das histórias que ouvia em casa, percebia os andarilhos como pessoas meio fantásticas, misteriosas, do tipo que não revela sua verdadeira identidade por um motivo grandioso, nobre. Anjos ou demônios disfarçados, rondando a terra para intervir na vida dos homens, talvez. Não tinha certeza.

Recentemente encontrei um deles. Distraída com uma leitura interessante acabei chegando atrasada para a feirinha da quarta-feira na minha cidade. Já restavam poucas bancas e nelas poucas verduras. Mesmo assim, preferi comprar as verduras da semana lá, porque são mais saudáveis, “orgânicas”, como alguns feirantes já aprenderam a classificá-las para atrair os fregueses ou justificar os preços. Comprei pequi, os primeiros deste ano, queijo curado e fui então procurar tomates. Quando estava escolhendo um andarilho aproximou-se da banca. Olhei-o esquecida da desconfiança que tinha deles.

Este era um homem ainda jovem, negro, de cabelos avermelhados talvez queimados de sol. Sorriu com todos os dentes e ficou por ali. Parei de prestar atenção nele e me concentrei no ato de escolher os tomates. Comprei também as últimas mangabas naquela mesma banca e saí.

Já na saída da feira procurei o troco que havia recebido na banca de queijo e não encontrei. Voltei lá, olhei ao redor e nada. Se tem uma coisa que me deixa chateada é perder dinheiro. Acho até que esta foi a primeira vez. Em casa vasculhei os bolsos, a carteira, as sacolas de compra e nada. Sou muito cuidadosa, mas desta vez alguma coisa meio estranha aconteceu.

Mais tarde fiquei pensando no dinheiro. Aquele pesar... Fiz as contas e descobri que não era muito. Puxa vida, perdi mesmo. Então veio a descoberta. O andarilho! Foi ele quem ficou com o dinheiro. Então comecei a repensar aquele momento. Ele não comprou nada, mas se dirigiu para a banca como se esperasse encontrar alguma coisa – o meu dinheiro. Ele já o estava vendo! Pegou e saiu. Foi isso.

Bom, se foi ele, não faz mal, pensei. Até aceito perder o troco. Imagino que tenha sido levado até ali por alguma intuição para encontrar exatamente aquele dinheiro, talvez estivesse com fome ou precisando de qualquer outra coisa.

O que procuram as pessoas quando saem assim caminhando? O que os fizeram desistir da segurança e da estabilidade da família, do trabalho certo, do salário no final do mês? Resolveram não fazer parte das organizações estabelecidas pela sociedade, pelos sistemas que colocam cada um no seu lugar? Por que as pessoas saem caminhando assim, sem rumo, deixando familiares, casas e a própria história para trás? Loucura ou desejo de liberdade, crença em algo extraodinário, sei lá. Fuga, rebeldia, inquietação? Resposta definitiva a uma situação de abandono a que foram colocados por alguém? Alguns vivem, conscientemente, o hoje, como os niilistas, outros, sequer percebem o agora, mas todos rebeldes de alguma forma.

Rebeldes também foram os românticos e os hippies contra uma organização preparada para enquadrá-los e formatá-los para que seguissem um caminho previamente percorrido por outros. Quanto custa dizer não ao modo de vida escolhido e aceito pela maioria? No final, quando tudo se acabar (ou começar) creio que teremos a resposta. Imagino a surpresa quando virmos a pirâmide dos valores invertida e os miseráveis, pobres, esquecidos em situação privilegiada.

Uruaçu, novembro de 2010

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